
Uma mulher contrata um homem, numa discoteca "gay", para ele ficar a olhar para ela. Ela ia matar-se, "porque é mulher". Ele salva-a, e a partir daí ela paga-lhe para ele olhar para aquilo que é proibido olhar. Não é ele um homem (o Homem) que não gosta de mulheres? Ela quer que ele olhe para os lugares dela (buracos, pêlos, fluidos menstruais), que são os da "obscenidade feminina" - como é estigma, como está escrito desde o Velho Testamento. São quatro dias, quatro noites, numa casa à beira de um penhasco. Ela (Amira Cassar) está em posição de aparente oferenda, sacrifício. Mas não, é ela que lhe faz a oferenda a ele (Rocco Siffredi), que o inicia, como Eva, outra vez, a Adão. Adão cai, "o que quer dizer que se eleva", diz a realizadora. A mulher possibilitou-lhe a "revelação". E é assim que "Anatomie de l'Enfer", que Catherine Breillat adaptou do seu romance "Pornocratie", constrói um espaço alternativo para o sagrado. Breillat, é já esse o seu figurino, é provocadora ("o que não quer dizer que faça filmes para provocar"). Para não variar, "Anatomie de l'Enfer" estreou em França e indispôs muita gente. Passou no Forum de Berlim, numa sessão única, completamente cheia, e, no fim, a realizadora felicitou o público por ter "aguentado" (sim, ela é quem melhor sabe falar do seu cinema, que é sobre "as coisas que todas as pessoas sabem mas não querem saber, mas não querem ver"). "Aguentado" o quê? Sexo e órgãos em grande plano, o que não é variação muito grande em relação ao seu trabalho anterior - Rocco Siffredi, actor porno, está disposto a enveredar por uma carreira dramática, mas ainda contribui com aquilo que lhe fez a fama; Amira Cassar despe-se, mas para as cenas mais "hard" (intromissão de objectos, etc.) foi dobrada, informa uma legenda. Desta vez há mais rituais, com batons, tubos e até um Tampax usado a servir de bebida quente (ele bebe o fluido dela). A mesma voz-off, pela própria Breillat, que tanto serve de enunciação do feminino como do masculino, despacha trivialidades ou esmera-se no literário. O todo é rarefeito, as palavras e os corpos ameaçam separar-se, mas não é difícil roçar o cabotinismo. E, no entanto..., a lógica do mito cria as suas leis, e não custa sermos atraídos para essa dimensão de fábula que toma conta do cinema de Breillat. Sim, passa por aqui qualquer coisa que tem a ver com o estremecimento da linguagem da intimidade e do conhecimento. É assim que agora se exorciza um fantasma que será sempre o da realizadora de "Romance", como ela assume: o Homem, aquele ser "que não gosta da Mulher".
Ficha Técnica
Direção: Catherine Breillat
Ano de Lançamento: 2004
Origem: França
Gênero: Drama
Duração: 77 min
Título Original: Anatomie de l'Enfer / Anatomy of Hell
Elenco:
Amira Casar
Rocco Siffredi
Alexandre Belin
Manuel Taglang
Jacques Monge
Claudio Carvalho
Carolina Lopes
Diego Rodrigues
João Marques
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